Seu Joca, em frente ao prédio onde funcionou o Zicartola, na Vila Formosa. MARCIO FERNANDES/AE
A história do Rio de Janeiro tem um capítulo recheado de música e boa comida chamado Zicartola, o mítico bar aberto por Cartola e sua mulher, dona Zica, na década de 60. Esse símbolo do samba, poucos sabem, não é exclusividade dos cariocas. O bar que promoveu encontros memoráveis com gente do calibre de Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, além do próprio anfitrião, viveu tempos paulistanos. Foi em meados da década de 70 que o Zicartola, também sob o comando de Cartola na música e dona Zica na cozinha funcionou na afastada Vila Formosa, zona leste. Apesar de vida curta, menos de seis meses, a casa marcou história na biografia do casal Marília da Silva Chagas, de 70 anos, e João Ferreira Chagas, o Joca, de 80. Amigos de longa data do casal de honra da Mangueira, os dois foram sócios do bar da capital paulista. A presença de Cartola é como uma trilha sonora das lembranças também povoadas pelo carinho de Euzébia Silva do Nascimento – a Dona Zica, falecida em 2003. Foi ali na sala daquela casa que surgira a ideia de remontar o saudoso Zicartola. O ano era o de 1974. Cartola, então com 65 anos, visitava São Paulo para gravar o que seria seu primeiro disco. “Um dia estávamos conversando, enquanto eu fazia o almoço, e comentamos sobre abrir o bar num salão que estava vazio aqui perto. Cartola topou na hora”, conta Marília. Por pouco, aquela conversa não evoluiu para o que seria uma ‘segunda Mangueira’. “A ideia era abrir uma escola de samba. A gente com cinco filhos, tendo de correr atrás, não dava para pensar numa escola”, diz Joca. Quando Cartola e dona Zica estavam em São Paulo, nada de hotel. Eles se hospedavam na casa de Marília e Joca. A confiança era fruto de uma amizade nascida em Mangueira, ainda no final da década de 40, quando Joca chegou ao Rio, vindo do Recife. Na capital carioca envolveu-se com o samba e conheceu outros mestres, como Carlos Cachaça. Por lá também encontrou Marília, moça paulista que passava uns tempos na casa de parentes. Em 1958 o casal já se mudou para São Paulo, casaram, tiveram os filhos, mas os laços verde e rosa sobreviveram. O Zicartola paulistano funcionou na Rua Guaxupé, nº 893, em cima de uma padaria. “Aqui nem tinha asfalto, a rua era de paralelepípedo. Em volta, tudo era mato”, diz Joca. Os donos do prédio abraçaram o projeto e liberaram o aluguel. Marília lembra, com memória prodigiosa, que a inauguração ocorrera no dia 13 de dezembro de 1974, uma sexta-feira de tempo quente. “Quando o Zicartola abriu só vinha gente de faculdade, a rua ficava cheia de carros. Mas o pessoal daqui nem conhecia”, diz. Quem visitou o botequim teve o privilégio de conhecer as habilidades culinárias de dona Zica e ouvir algumas das pérolas do samba na voz do compositor. Da cozinha, saíam delícias como xinxim de galinha, bobó de camarão e vatapá. O salão era grande e o palco se estendia por quatro metros quadrados. “Antes de cantar, o Cartola se sentava, tomava meia cerveja, conhaque e fumava seu cigarro”, conta Marília, que assumia o caixa. Quando subia ao palco, apenas composições próprias. “Fazia-se um silêncio para ouvi-lo.” Com batidinhas na mesa e voz agitada pela emoção, Joca entoa, no meio da conversa, alguns dos clássicos que o mestre cantava, como “a sorrir eu pretendo levar a vida...” O olhar carinhoso de Marília para o marido evidencia as profundas raízes que o samba tem naquela família. Além do fundador da Mangueira, passaram por ali nomes como Dona Ivone Lara e Nelson Cavaquinho. Músicos da região leste também se revezavam, como os já esquecidos e nunca gravados Principais do Samba. Abrir o Zicartola exigia esforço e doação. Toda sexta-feira, o casal vinha do Rio de Janeiro para São Paulo de trem. Nilcemar Nogueira, neta de Dona Zica e Cartola, lembra que a tentativa era remontar tudo que o Zicartola foi no Rio. “Os dois iam empolgados para São Paulo, o clima era bom e a proposta era a mesma. Mas a distância dificultou muito”, diz ela. O desafio da locomoção e os compromissos que começavam a surgir para Cartola depois do primeiro disco o afastavam da capital paulista. Segundo Joca, o bar até que enchia, mas funcionava sem bilheteria. “Não dava para cobrar, o samba não tinha muita força por aqui”, diz ele. Em junho de 1975, o Zicartola de São Paulo já não abria mais, deixando apenas lembranças. “Quando o Nelson Cavaquinho vinha, ficávamos até de manhã fazendo serenata na porta”, lembra Marília. “Imagine se fosse hoje? Ia explodir”, reflete Joca, que garante não ter conseguido lucro com o empreendimento. No lugar do Zicartola funciona atualmente uma academia de musculação. Nada remete às noites de samba de outrora. O asfalto já chegou, mas o bairro ainda mantém um ar provinciano, sem muitos prédios por perto e nenhuma vida boemia. Em 1979, dois anos após Cartola voltar a desfilar na Mangueira, ele esteve na casa de Joca e Marília pela última vez. “Era gente muito boa, mas de falar pouco”, diz Joca. Quando morreu, em 1980, o casal não conseguiu ir ao Rio, mas ligaram para a família. Dona Zica continuou a aparecer até sua morte. “Era uma pessoa maravilhosa e bondosa. Apesar da simplicidade da casa, sempre preferia ficar aqui”, diz Marília. Até hoje, quando a Mangueira desfila, a emoção se instala pela casa. Joca, que saiu na escola tocando tamborim por muitos anos, fica com olhos marejados quando canta os versos que, inspirados no amigo poeta, escreveu em homenagem à escola. “Brilha lá no céu uma estrela, iluminando a passarela pra ver a Mangueira passar.”
A história do Rio de Janeiro tem um capítulo recheado de música e boa comida chamado Zicartola, o mítico bar aberto por Cartola e sua mulher, dona Zica, na década de 60. Esse símbolo do samba, poucos sabem, não é exclusividade dos cariocas. O bar que promoveu encontros memoráveis com gente do calibre de Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola, além do próprio anfitrião, viveu tempos paulistanos. Foi em meados da década de 70 que o Zicartola, também sob o comando de Cartola na música e dona Zica na cozinha funcionou na afastada Vila Formosa, zona leste. Apesar de vida curta, menos de seis meses, a casa marcou história na biografia do casal Marília da Silva Chagas, de 70 anos, e João Ferreira Chagas, o Joca, de 80. Amigos de longa data do casal de honra da Mangueira, os dois foram sócios do bar da capital paulista. A presença de Cartola é como uma trilha sonora das lembranças também povoadas pelo carinho de Euzébia Silva do Nascimento – a Dona Zica, falecida em 2003. Foi ali na sala daquela casa que surgira a ideia de remontar o saudoso Zicartola. O ano era o de 1974. Cartola, então com 65 anos, visitava São Paulo para gravar o que seria seu primeiro disco. “Um dia estávamos conversando, enquanto eu fazia o almoço, e comentamos sobre abrir o bar num salão que estava vazio aqui perto. Cartola topou na hora”, conta Marília. Por pouco, aquela conversa não evoluiu para o que seria uma ‘segunda Mangueira’. “A ideia era abrir uma escola de samba. A gente com cinco filhos, tendo de correr atrás, não dava para pensar numa escola”, diz Joca. Quando Cartola e dona Zica estavam em São Paulo, nada de hotel. Eles se hospedavam na casa de Marília e Joca. A confiança era fruto de uma amizade nascida em Mangueira, ainda no final da década de 40, quando Joca chegou ao Rio, vindo do Recife. Na capital carioca envolveu-se com o samba e conheceu outros mestres, como Carlos Cachaça. Por lá também encontrou Marília, moça paulista que passava uns tempos na casa de parentes. Em 1958 o casal já se mudou para São Paulo, casaram, tiveram os filhos, mas os laços verde e rosa sobreviveram. O Zicartola paulistano funcionou na Rua Guaxupé, nº 893, em cima de uma padaria. “Aqui nem tinha asfalto, a rua era de paralelepípedo. Em volta, tudo era mato”, diz Joca. Os donos do prédio abraçaram o projeto e liberaram o aluguel. Marília lembra, com memória prodigiosa, que a inauguração ocorrera no dia 13 de dezembro de 1974, uma sexta-feira de tempo quente. “Quando o Zicartola abriu só vinha gente de faculdade, a rua ficava cheia de carros. Mas o pessoal daqui nem conhecia”, diz. Quem visitou o botequim teve o privilégio de conhecer as habilidades culinárias de dona Zica e ouvir algumas das pérolas do samba na voz do compositor. Da cozinha, saíam delícias como xinxim de galinha, bobó de camarão e vatapá. O salão era grande e o palco se estendia por quatro metros quadrados. “Antes de cantar, o Cartola se sentava, tomava meia cerveja, conhaque e fumava seu cigarro”, conta Marília, que assumia o caixa. Quando subia ao palco, apenas composições próprias. “Fazia-se um silêncio para ouvi-lo.” Com batidinhas na mesa e voz agitada pela emoção, Joca entoa, no meio da conversa, alguns dos clássicos que o mestre cantava, como “a sorrir eu pretendo levar a vida...” O olhar carinhoso de Marília para o marido evidencia as profundas raízes que o samba tem naquela família. Além do fundador da Mangueira, passaram por ali nomes como Dona Ivone Lara e Nelson Cavaquinho. Músicos da região leste também se revezavam, como os já esquecidos e nunca gravados Principais do Samba. Abrir o Zicartola exigia esforço e doação. Toda sexta-feira, o casal vinha do Rio de Janeiro para São Paulo de trem. Nilcemar Nogueira, neta de Dona Zica e Cartola, lembra que a tentativa era remontar tudo que o Zicartola foi no Rio. “Os dois iam empolgados para São Paulo, o clima era bom e a proposta era a mesma. Mas a distância dificultou muito”, diz ela. O desafio da locomoção e os compromissos que começavam a surgir para Cartola depois do primeiro disco o afastavam da capital paulista. Segundo Joca, o bar até que enchia, mas funcionava sem bilheteria. “Não dava para cobrar, o samba não tinha muita força por aqui”, diz ele. Em junho de 1975, o Zicartola de São Paulo já não abria mais, deixando apenas lembranças. “Quando o Nelson Cavaquinho vinha, ficávamos até de manhã fazendo serenata na porta”, lembra Marília. “Imagine se fosse hoje? Ia explodir”, reflete Joca, que garante não ter conseguido lucro com o empreendimento. No lugar do Zicartola funciona atualmente uma academia de musculação. Nada remete às noites de samba de outrora. O asfalto já chegou, mas o bairro ainda mantém um ar provinciano, sem muitos prédios por perto e nenhuma vida boemia. Em 1979, dois anos após Cartola voltar a desfilar na Mangueira, ele esteve na casa de Joca e Marília pela última vez. “Era gente muito boa, mas de falar pouco”, diz Joca. Quando morreu, em 1980, o casal não conseguiu ir ao Rio, mas ligaram para a família. Dona Zica continuou a aparecer até sua morte. “Era uma pessoa maravilhosa e bondosa. Apesar da simplicidade da casa, sempre preferia ficar aqui”, diz Marília. Até hoje, quando a Mangueira desfila, a emoção se instala pela casa. Joca, que saiu na escola tocando tamborim por muitos anos, fica com olhos marejados quando canta os versos que, inspirados no amigo poeta, escreveu em homenagem à escola. “Brilha lá no céu uma estrela, iluminando a passarela pra ver a Mangueira passar.”
Também desconhecia essa história. Sou fã de Cartola, fiz um quadro lindo sobre ele no ano passado. Parabéns por esses resgates todos, só enobrece a blogosfera. abraço
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